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domingo, 11 de dezembro de 2011

DISCURSO DE AGUILAR MORAIS - Edição Pe. Saviniano

DISCURSO DO INTELECTUAL MORRETENSE, AGUILAR MORAIS,
À BEIRA DO TÚMULO DO PRANTEADO VIGÁRIO:

As palavras que vou ler foram por mim pronunciadas há mais de quatro anos, por ocasião de uma homenagem lítero-musical prestada, na Rádio Club Paranaense, ao Padre Saviniano, na qual tomaram também parte o poeta conterrâneo Sr. Dr. José Gelbeke, o ilustre musicólogo Benedito Nicolau dos Santos, o nosso querido Rodrigo de Freitas e outras pessoas:
“Minhas palavras não deverão ser apreciadas em sentido diverso daquele que eu lhes desejo emprestar. Têm elas apenas o cunho de um depoimento pessoal, o valor restrito de um testamento. O Padre Saviniano Gonçalves Ferreira, Vigário de Morretes há cerca de trinta anos, é um sacerdote paranaense, nascido em Araucária, e ligado, por laços de parentesco, a distintas famílias do nosso Estado. Se não me engano, iniciou e completou os seus estudos em Curitiba, onde se ordenou. Nada de misterioso, que aguce a curiosidade, há em sua vida limpa, que decorre como a de qualquer cidadão, desses que conhecemos desde a infância e de que seguimos todos os passos. De estatura acima da mediana, forte e risonho, amável, sabe ser de uma simplicidade e de uma modéstia incomuns, dando-nos a idéia de um São Cristóvão, que tivesse conseguido o milagre de concentrar no espírito todo o seu vigor físico, transformando-o em essência de bondade, de altruísmo, de caridade. Também do carvão de pedra, da hulha negra, que é calor, força, energia, se extraem perfumes, que geram sonhos e visões irreais. O vigário Saviniano já foi comparado a uma árvore robusta, cujo cerne não se presta a alimentar fornalhas, mas que fornece calor aos fogões dos pobrezinhos; árvore, que sempre pejada de flores e frutos, está plantada à porta das choças dos pequenos, dos que sofrem, para lhes dar a sua sombra, os seus parmos, a música das suas francas; árvore que alimenta o corpo e, como as lendas, fala aos homens uma linguagem cheia de ensinamentos, doces conselhos, de vida evangélica e simples. Infenso às pompas e postos, contrário a tudo quanto não seja natural, sábio e justo, foge o Padre Ferreira do convívio dos grandes e poderosos, para se acercar dos humildes, minorar-lhes os sofrimentos e ministrar-lhes, com a palavra meiga e sobretudo com o exemplo, as regras de viver piedosamente, no reino da ventura, que se alcança quando se chega à compreensão de que tudo no mundo é passageiro e que os homens são todos irmãos. Contudo, o Vigário Morretense não parece ser do seu século, se visto de um certo ângulo, que lhe enquadra a figura e lhe põe à mostra a alma apostolar, carregada de amor sem limites ao próximo, impregnada de piedade fraternal pelos seus semelhantes. Nesta época de transição e de angústia, em que mais feroz de nos mostra o egoísmo, avassalando a maioria das almas e das consciências e nelas destilando os seus venenos, o Padre Ferreira se assemelha a um elo de ouro solitário, desligado pelo tempo daquela corrente de amor, forjada por Jesus Cristo, e cujo segundo elo foi São Francisco de Assis, aparecendo agora, isolado, sem destino, perdido entre a montanha e o mar, no vale do Nhundiaquara...
O Vigário de minha terra tem da caridade uma noção de que as gerações contemporâneas rirão abertamente, julgando-a absurda, contrária às leis sociológicas, às diretrizes que se traçaram às nações e os homens desde há séculos. Ele não compreende a caridade que dá o que sobra, o que não faz falta, o que há em excesso; nem essa caridade que atira aos desvalidos a esmola com ostentação, que torna pública a dádiva, que transforma em moeda corrente e suja para edificação dos parvos, um ato puro que, se praticado às ocultas, sem alardes e sem ostentação, eleva e purifica a alma, ilumina a consciência e aproxima mais o homem de Deus, o Padre Ferreira pratica a caridade à sua maneira, como a pregava Jesus: reparte com o pobrezinho seu único pão, dá-lhe o agasalho que possui e fica, tiritando, ao frio. Nada lhe pertence, nada, quando seu irmão desventurado sofre necessidades.
Suas mãos estão sempre vazias, porque só tomam as cousas para as dar aos outros. Vazias, pensa ele, estão mais livres para abrir. O sacerdote que vive em Morretes veste-se pobremente, alimenta-se com frugalidade, não possui um vintém de seu. E oculta os benefícios que faz, nega-os risonhamente quando interpelado (graças atribuídas a Santa Filomena, de sua especial devoção, nota colhida do povo).
Quando sua batina desbota e começa a puir-se, são seus amigos, as senhoras, que o respeitam e veneram, quem primeiro se apercebe do mau estado das vestes sacerdotais. Cotizam-se, então, e oferecem-lhe uma batina nova. O Padre acha que não deve aceitar, reluta, deseja convencer seus amigos de que seu vestuário ainda serve, mas, afinal, como bom cristão, a recebe e aceita, sentindo-se, talvez mais próximo do Senhor por despojar-se do orgulho humano, por sentir-se menor do que os outros, por estender as mãos, no gesto humilde de receber. Este padre não é um asceta (anacoreta?), um fanático, nem mesmo um ser à parte, na vida da cidade em que reside. É um homem simples, chão acessível.
Dominando a língua latina, expressando-se em excelente linguagem, bastante culto e inteligente, quando prega parece estar conversando com o povo: nenhuma ênfase, nenhum tropo retórico, poucas parábolas, nenhum lance dramático. Conta às vidas dos Santos, narra os seus atos de heroísmo e de amor ao próximo e a sua crença, os seus martírios, a sua fé ardente, mas tudo de tal jeito, com os olhos tão baixos, com a expressão tão desnudada, que parece envergonhado.
Tem-se a impressão de que todas as grandezas, mesmo os sublimes sacrifícios dos mártires o deslocam, o ofuscam, o arrancam do seu natural, de sua santa simplicidade. Ponho o ponto final no meu depoimento, mas devo rematá-lo dizendo que o Padre Saviniano Gonçalves Ferreira, vigário de Morretes, é um santo do nosso tempo.”
Isto, dizia eu há quase um lustro. Repito-o, desolado, nesta hora triste em que o nosso grande amigo é chamado para o Reino de Deus, a cujo lado há um lugar para ele. Adeus, Padre Saviniano. Aqui fica, sangrando de dor, o coração deste povo que tanto te quis e que tanto amaste, protegeste e serviste, como sacerdote, como guia, como pai amantíssimo. Teu reino, padre, não era deste mundo. Passaste pela terra como uma estrela cadente, para lançar nas almas que te compreenderam e hauriram os teus ensinamentos, uma sementeira de luz, em que as flores divinas do amor, da preza, da bondade, do altruísmo e das mais belas virtudes cristãs desabrocharão à mil, como uma prova dos cuidados e da dedicação sem par do jardineiro que as semeou e as regou com suas lágrimas, dia a dia, minuto a minuto, dando-lhes às vezes o calor gerado pelos seus próprios sofrimentos físicos. No teu tugúrio, na tua humildade franciscana, durante trinta e cinco anos, cumpriste a missão sagrada que Deus te confiou: fazer o bem, purificar as almas, sofrer pelos outros. Cumpriste a tua dura e piedosa missão e voltaste para o Céu de onde vieste, de onde vieste, sim, porque seres corno tu só tem de humano o arcabouço material; a alma é luz celeste, que não morre, que não se extingue, que não se apaga.
Adeus, Padre Saviniano.
No coração morretense viverás como um santo que eras, num altar, perpetuamente incensado pela nossa imorredoura gratidão e pela nossa eterna saudade.
E agora eu peço a todos que, de joelhos, ergam suas preces a Deus pelo santo que foi o nosso irmão pobrezinho e cujo corpo se confunde com a terra-mãe, enquanto se evola para o Céu.”

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